Aconteceu que a bela Ana, aproveitando a preguiça do trabalho sob o sol do que os hereges chamavam de Frutidor, resolveu ir se banhar no córrego do Aleluia, mesmo sabendo que, se fosse pega ali, seria morta. Afinal, morava num arraial onde as coisas ainda estavam nos seus devidos lugares, com exceção às putas que viviam à beira do supracitado curso d’água e aos maridos que religiosamente ali apareciam, mas dos quais todo mundo fingia não saber para não arrumar sarna para se coçar. Sempre que uma moça de família era pega por aquelas imediações, era quase que imediatamente levada até o paredão e acabada a tiros pelo coronel de então, fosse ela e ele quem fossem. Foram muitas as moçoilas que ali morreram, por justiça ou simples vingança, e houve até um caso em que o carrasco era pai da executada.
Enfim, acontece que, certa vez, quando a bela Ana estava voltando de seu banho, um maricas de nome Olegário Jordão que a tinha por muita inveja a viu e imediatamente foi até a casa do coronel Pancrácio Garcia para delatá-la. Na mesma noite, quando ela estava servindo o caldo verde para o pai, um galego do qual ninguém sabia o nome e o qual todos chamavam por Ou, os praças invadiram a sua casa e a levaram para a delegacia. Mesmo com as súplicas insistentes do velho lavrador, ela foi formalmente acusada diante de várias pessoas, inclusive do padre Mauro Ancassuerd, e teve sua execução marcada para o meio-dia seguinte.
Enquanto naquela noite, ao lado de um prato de comida que se recusou a comer e ratos que faziam a festa sobre o mesmo, a bela Ana lamentava a sua situação, culpando-se por ter feito o que fez mesmo sabendo dos perigos e jurando acabar com a raça daquele infeliz que a acoimou, o circo começava a entrar de novo na cidade depois de um ano ausente. Lá do meio da Alvorada já se ouvia o ribombar do espetáculo que ia se aproximando como a força de um desastre. Eram muitos os homens de cartola, alguns eram os mais extravagantes palhaços, outros mui fortes que traziam em seus ombros outros tantos iguais a si, um outro carregava um leão que rugia pela coleirinha, moças belíssimas cantavam e dançavam os feitos daquele mesmo picadeiro pelo mundo afora, outras tantas de dependuravam em fitas de chita que ninguém sabia de que ponto do céu partiam, os animais mais exóticos pintados das cores mais diversas que mais pareciam explodir para fora de si mesmas e uma enorme gaiola de rodinhas empurrada por um grupo de homens que, apesar do esforço que faziam, ajudavam a cantar o hino do espetáculo. Quando o mesmo passou pela praça, poucos minutos antes de parar diante da casa do coronel para pedir-lhe permissão para ficar, a condenada mesma o viu e pela primeira vez desde que aquela tormenta começou ela sentiu-se feliz, pois pelo menos morreria com alguma boa imagem daquele dia no mais profundo da alma.
Tamanha foi sua surpresa quando, do nada, um homem apareceu na sua cela e chamou por seu nome. Assustada, ela o ameaçou, dizendo que jogaria o que fosse sobre ele e o mataria, pois não tinha nada a perder. O intruso, entretanto, pareceu não se incomodar, e foi caminhando na escuridão até se fazer visível. A bela Ana o conhecia. Era Thomé Monjolo, seu amigo de infância que desde sempre fora apaixonado por ela e que no setembro anterior tinha ido embora com o mesmo circo.
Ela o abraçou com uma força que pareceu capaz de quebrar-lhe as omoplatas e o encheu de beijos saudosos, perguntando onde ele havia se metido, o que estava fazendo da vida, por que diabos tinha deixado a arraial, assim, sem nada avisar, o motivo de ter feito aquilo e a deixado ali, tão aflita, o que fazia agora que estava no circo, se era um mágico, pois era impossível aparecer naquela masmorra sem antes subornar algum guarda e ela sabia o quão honesto ele era... E seguiu-se a inquisição até que ele teve tempo para responder tudo e ela ficar sabendo que ele não era mágico, mas um hábil domador, que era incumbido de tomar conta de uma criatura tão mais fantástica que qualquer outra que ela poderia imaginar: um Behemoth.
Thomé contou tudo sobre ele: que era uma criatura vinda da Cidade Santa, Jerusalém, e que era a única que vivia em todo o mundo, capturada por ele mesmo no dia em que um rabino pediu-lhe com toda as suas forças que o aprisionasse, pois, na ânsia da vinda e da derrota do Leviatã, eterno inimigo da dita criatura, trouxera-o para a sua casa e ele estava acabando com suas plantações; cheio de compaixão como era e vendo ali uma boa oportunidade para a sua trupe, o senhor Monjolo tomou para si aquele bicho que tinha sido citado no livro de Jó, depois de sete dias e sete noites de luta assistida por todos os judeus, os árabes e os cristãos da urbe, da qual ele teve que descansar dormindo por sete meses inteiros para depois começar a amansar aquele ser que, a partir daquele momento, só obedecia a ele e a Deus, que o deveria chamar no Fim dos Tempos para derrotar a besta marinha que desde a sua criação desafiava ao Senhor.
Quando ele terminou de contar a história, Ana explicou-lhe a sua situação, que ele já conhecia bem, pois uma das coisas que o toque no Behemoth concedia era saber o que estava acontecendo com as pessoas que amava. Então, cheia de lágrimas nos olhos, a moça clamou por ajuda, e Thomé, muito astuto, bolou um plano com ela que a livraria da extinção e, ainda por cima, provaria sua inocência.
No outro dia, próximo o meridião, os meganhas apareceram para atar-lhe as mãos nas costas com duas grossas cordas e falhar-lhe barbaridades, depois de fechar-lhe os olhos com a venda mais negra. Os três caminharam rumo ao paredão, que ficava em frente à igreja, para o escândalo do cura, que achava um absurdo o palco da carnificina ficar defronte de uma casa de adoração. Colocaram a condenada encostada no mesmo, enquanto todos cochichavam e a sentença era lida em voz alta. Antes que atirassem com o pedido de fogo, entretanto, com o coração saindo pela boca, o padre Mauro interrompeu tudo e pediu permissão ao coronel Pancrácio para que todos pudessem cumprir uma última vontade, muito comum em outros países quando alguém estava a ponto de ser executado. Todos acharam aquilo muito bonito por parte do pároco e só aumentaria ainda mais o gosto do espetáculo. Depois do homem santo ter se aproximado de seu ouvido e ter-lhe cochichado algumas palavras, dizendo em segredo que acreditava em sua inocência e que tinha conversado com Thomé Monjolo e visto a criatura bíblica, a bela Ana disse em alto e bom som que só rogava aos céus por um sinal de inocência, a montaria de um Behemoth, e que se aquilo acontecesse, ela não seria morta. Todos, achando aquilo uma piada, responderam que o pedido era justo, rindo-se. Entretanto, antes que pudessem atirar nela, a terra começou a tremer a ponto de fazer o sino da torre tocar qual sirena de hospício e, de repente, o Behemoth, do qual ninguém tinha conhecimento, pois achavam ser uma fábula piedosa, apareceu e tomou em seu lombo a moça que seria assassinada, e saiu pelo mato, enquanto todos ficavam boquiabertos e o velho Ou e o pessoal do circo exultando de alegria.
Ela e aquela criatura, que apesar de ter um quê de rinoceronte era bem mais encorpado que um e sua velocidade e força era assustadora a ponto de no final da alegre corrida as virilhas de Ana estarem mais doloridas do que se estivesse montando um touro brabo, atravessaram sem medo as matas em volta do Arraial até que, às margens pululantes do rio das Mortes, que naquele instante apresentava uma estranha vivacidade segundo a qual dava para ver as sereias que se esgueiravam lá em baixo bem no fundo, pararam bruscamente. Lá estava Thomé, sorridente, com uma roupa magnífica, onde se via estrelas costuradas que ele disse ter comprado de um mercador em Gênova.
Virando sua cabeça gorda e usando seus dentes sujos de uma pasta verde que cheirava a hortelã, o Behemoth colocou Ana no chão e ela, não se importando com mais nada, derrubou no chão com alegria aquele com o qual uma vez tinha se recusado a casar por medo de a amizade infantil ser encerrada, e com a gratidão dos amantes salvos deu-lhe o beijo que tinha escondido nos lábios e para o qual somente autorizaria para aquele que fosse o amor da sua vida e que, naquele momento, revelou no jovem Monjolo, o inteligente, o belo e o corajoso Thomé.
Com o berro do Behemoth, que se mostrava mais forte que todos os exércitos do mundo juntos, os dois subiram nele e voltaram para o Arraial, onde todos aguardavam dentro de suas casas, olhando assustados pela janela. O pessoal do circo, junto com Ou e o padre Mauro, no entanto, ficaram ali e sorriram quando viram os dois voltando sobre a criatura profética. Quando eles desceram novamente dele, com uma voz que lembrava uma autoridade sem tamanho, o Behemoth falou, sem abrir a boca, que ali estava a prova sob a qual o coronel permitiria a vida de Ana e que todos a deixassem em paz para toda a vida, enquanto não houvesse nela um erro do qual mais de cinco pessoas a acusassem e, ainda assim, justamente, pois, caso contrário, ele sentiria o cheiro da arbitrariedade e voltaria por si só, do lugar onde estivesse, para esmagar a cabeça daqueles que assim agissem.
O circo ficou mais algum tempo na cidade e o Behemoth preferiu ficar escondido para não atrapalhar as atividades, que talvez por medo daquele bicho acabar com todos no lugar foram mais lucrativas do que nos anos anteriores.
Um dia antes de o espetáculo deixar a cidade, o cura uniu Ana e Thomé em casamento e eles foram embora junto com seu Ou para suas andanças pelo mundo afora. Só pararam quando a bela teve seu primeiro filho nas distantes terras da Conchinchina, à beira de um rio chamado Mekong, e resolveram voltar para o Arraial, onde construíram uma bela casa e criaram todos os seus filhos.
Aquele picadeiro, entretanto, nunca mais voltou para lá. Dizem que, numa viagem a navio pelo Caribe, eles acabaram sendo sugados pelo céu, onde passaram a viver, alegrando os que moram lá em cima. O Behemoth, entretanto, ficou entalado no buraco e, depois de muito esforço, conseguiu cair no mar, onde minha avó, a senhora Ana de Bourbon e Monjolo, dizia estar até hoje, esperando com seus olhos mais redondos, suas orelhas humanas e rabo de leão que o Leviatã aparecesse para com ele travar a sua batalha mortal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário