domingo, 22 de fevereiro de 2009

A Língua de Moacyr

Ele já nem lembrava mais porquê tinha começado a tomar aqueles comprimidos, mas nos últimos dias, com certeza, não tinham como intuito aliviar a dor. Quando acordava, a primeira coisa que fazia era abrir o vidrinho no criado-mudo e tomar dois de uma vez só, sem água nenhuma para ajudar na descida até o estômago. Aquilo desagradava sua garganta e alguns dias o efeito era tão aterrador que ele ficava deitado na cama, olhando para o teto. De vez em quando, um inseto aparecia próximo à lâmpada e ele gritava impropérios a ele, até o momento que o bichinho saía pela janela e ele começava a chorar aos gritos, pedindo que o dito-cujo voltasse para dentro e o fizesse companhia na festa que se desenvolvia dentro e fora de si. A maioria das vezes, ele não voltava, assim como a esposa do rapaz prostrado na cama. Ambos eram muito espertos para ficar ao lado daquele disfórico que só piorava conforme o sol ia sumindo e reaparecendo, dia após dia. Se soubessem o quanto ele os amava, talvez tivessem ficado para cuidar dele, de sua afta monstruosa na ponta da língua. Foi então que, sentada ao seu lado na cama, uma moça bonita sussurrou-lhe ao ouvido. Aconselhava-o para que cortasse a língua, que o seu sangue derramado sobre os lençois falaria por ele e traria a mulher de volta. Confiando naquela figura provocativa, tomou na mão direita aquele objeto frio de cor argêntea reluzente e tocou o ventre da boca com a força de um varão. Tão logo fez isso o fogo da dor se espalhou por seu corpo inteiro e foi se esvaindo dele na forma de um jorro contínuo de um líquido quente e vermelho. Conforme as coisas foram perdendo suas cores, transformando-se em simples armações infantis, ele recobrava a sua lucidez e tentava estancar com a roupagem da cama a vida que tentava sair de qualquer jeito de dentro de si, acompanhada dos espasmos hemorrágicos. A porta da sala rangeu no momento que ele conseguiu dar um grito abafado por causa das coisas que lhe tapavam a boca. Não demorou nem um segundo e ele já estava dando seu último suspiro que a jovem Marta conseguiu pegar. Com os olhos cheios de desespero, pediu que ele voltasse. O falecido Moacyr, entretanto, parecia insensível diante de suas súplicas. Foram tão grandes os berros naquela noite que os vizinhos tiveram que aguardar na sala para consolá-la. Só foi sair dali altas horas, com o pedaço da língua na mão, que guardou dentro de uma lata onde antigamente se escondiam seus biscoitos favoritos, uns amanteigados vindos da Dinamarca ou algum outro bocado europeu. E toda vez que a viúva passava por ele, pensava consigo mesma que ali era um lugar perfeito para descansar a putrefata parte que levara seu amor à morte. Só foi se livrar dela anos depois quando, consolada, conseguiu casar de novo e sentir dentro de si uma nova língua que a fez esquecer e até amaldiçoar a primeira. E deu por decretado naquela casa que ninguém tomaria daquela maldita pentazocina, nem que se estivesse com o corpo se contorcendo nas dores do mais terrível calvário.

Um comentário:

  1. Ainda não consegui absorver, mas a forma como escreve é profunda. Bem escrito. Parabéns.

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