terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

O Menino Perdido e o Pastor-Alemão

Já passava das seis da tarde e Betinho ainda não tinha aparecido para jantar. Fui eu que percebi sua ausência, pois minha mãe, como sempre, estava ocupada demais com os óleos e cebolas do arroz. Tentei procurá-lo na rua, na casa dos amigos, ninguém sabia dele. Comecei a me desesperar um pouco. Corria na cidade a história de um pedófilo e isso foi o que me trouxe o coração ao ventre da boca, a ponto de voltar para dentro de casa e gritar da sala até a cozinha:

- Sumiu! – E minha voz estremeceu. – Sumiu!

Dona Elza perguntou quem e eu disse. Pela primeira vez desde que eu estava procurando por meu irmão caçula, ela girou os botões do fogão, enxugou a mão no avental e pediu que eu não assustasse, pelo amor de Deus. Eu fiquei quieto, seguindo-a de um lado para o outro, dizendo os lugares onde eu já tinha procurado por ele.

Quando nossa expedição por toda a proximidade terminou, começamos a ligar para nossos parentes que, tão apreensivos quanto nós, vieram nos ajudar na busca. O padrinho do Alberto, quando estacionou aqui à frente de casa, depois de cumprimentar todo um séquito de semelhantes, chegou à sala, onde minha mãe, desconsolada, chorava e assoava no pano de prato que trazia sobre o ombro, com os cabelos começando a se desalinhar, dando-lhe uma aparência monstruosa de mulher das cavernas.

- Eu devia ter mantido o olho pregado dele, mas, não! – Culpou-se, os olhos fechados de tantas lágrimas. – Eu preferi ficar fazendo o jantar a me preocupar com ele!

Tio Solano, que era o tal pai-em-Deus, pegou o telefone na mesinha de centro e discou pela polícia. Eles, tão alarmados quanto nós por causa do conto do abusador de crianças, trouxeram até um cachorro, um vira-lata que tinha alguma coisa de pastor-alemão e para quem demos uma meia usada do meu irmão para que cheirasse.

- Se ele não achar o teu filho, dona, não merece ficar vivo.

Pelo que eu pude ouvir, o cachorro até deu um choramingo por causa do comentário maldoso do policial, mas logo saiu pela casa inspecionando com o focinho úmido todo canto, inclusive o quarto da minha mãe.

A esta altura, dona Elza, tio Solano, os três policiais, um casal de velhinhos vizinho a nós e eu estávamos na porta, seguindo atentos os movimentos do animal. De repente, ele lançou seus quarenta quilos sobre a cama de casal e com uma dócil ferocidade puxou para o lado o edredom e revelou Betinho, dormindo e todo suado.

Minha mãe, envergonhada, talvez pensando que era a pior pessoa do mundo, agradeceu a ajuda de todos enquanto pegava o meu irmão nos braços e enchia-lhe de beijos de remorso.

Os parentes, principalmente os mais velhos, se dispersaram rápido, culpando a minha mãe, “ah, que mulher mais idiota, não acredito que eu seja sua tia/irmã/mãe”. Os últimos a ficarem foram aqueles que estavam à porta do quarto quando encontram Betinho, dizendo, “ah, essas coisas acontecem, ela não devia se culpar tanto”. E foram esses que ficaram e se estatelaram com a macarronada maravilhosa de minha mãe, inclusive o cachorro que, satisfeito, suspirou por ter fugido do sacrifício.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A Dança dos Pombos

Quando Abel me levou àquele restaurante, eu sabia que me deixaria sozinho na mesa pra correr atrás de alguma moça, então pedi algo para comer e se alguém aparecesse para me tirar pra dançar eu simplesmente diria que estava indisposto. Entretanto, minha ideia mudou de rumo quando ela apareceu e se sentou ao meu lado, com aquele vestido branco que, apesar da cor, parecia acumular toda a luxúria humana. Caía tão bem em seu corpo, mas não tinha nada a ver com sua personalidade. Era, sim, radiante, mas suas palavras eram tão agradáveis que não lembravam nada pecaminoso. Enquanto brincava com os restos no meu prato, nem um pouco preocupado com o que ela estava pensando, ficava olhando para os seus olhos verdes, vivos e profundos, no intuito de não escorregar até os seios e parecer indelicado. Apesar de querer sê-lo, ainda mais com aquele par que evocava a mais cândida perfeição, não o fui. Conversamos por cerca de meia-hora, o meu amigo não dando nem sinal de vida, provavelmente enfiado em algum banheiro, cavalgando. Melhor assim. Ficava mais à vontade com ela, sem a interrupção de algum comentário ou ação idiota.

- Adoro essa música... – Ela comentou, se levantando da cadeira. – Vamos dançar?

Por um momento, hesitei. Se havia algo que eu definitivamente não sabia fazer era aquilo. Todos aqueles passos, todo aquele corpo... Preferia usar isso em outra coisa e que não tinha muito a ver com bailar. Mas o fato daquela ser a mulher mais bonita que eu já vi na minha vida obrigou-me a segui-la até a pista de dança, bem no centro do Casadei’s, onde, vergonhosamente, confessei a minha falta de habilidade. Ela só sorriu pra mim e nós começamos a envergonhar.

Ela devia estar bêbada se não o estivesse. Apesar de eu parecer um espantalho nas suas primeiras lições de humanidade depois de uma repentina chamada à vida, ela se mantinha inerte na música, me chacoalhando para todo quanto é canto e convidando-me a fazer o mesmo. Suava frio, mas me sentia bem apesar da vergonha. Sua mão era delicada, assim como os pés, que batiam no chão acompanhados de um par de scarpans pretos que quase me perfuraram duas vezes.

De repente, ela fez o que mais me amedrontava a cabeça. Como a música começava a ficar mais acelerada, como um coração em época de entusiasmo, ela puxou-me para mais perto. Eu senti o seu hálito e não pude fazer outra coisa senão colocar minha mão esquerda em seu sensual quadril, erguer minha direita com a dela e começar um movimento frenético, com passos circulares, que nem eu mesmo entendi.

Nossas faces de entrecruzaram, de um lado para o outro, e gargalhávamos com uma força que chamou a atenção de todos. A loucura espontânea que tomou conta de nós fez-nos cair num transe coletivo, que foi festejado por todos a nossa volta, que nos abriu todo o espaço para nos amarmos na música. Estrondoso foi o momento seguido com o fim dela, quando todos aplaudiram energicamente e deixamo-nos levar pelo beijo que se seguiu.

Pode parecer estranho eu dizer isso, mas foi fascinante. Nunca senti lábios tão sedutores colados aos meus e nem movimentos tão suaves que provocassem em meu estômago a vontade de querer sentir a mesma sensação. Fiquei tão preso a isso que não percebi que, ainda de olhos fechados, ela saiu pela porta do restaurante, olhando para mim, sorridente.

No caminho de volta para casa, Abel, que, assim como todos os que estavam no restaurante, viu toda a dança, comentou:

- Foi ridículo! – E riu, como se aquela fosse a última coisa que faria no mundo. – Pareciam dois pombos acasalando!

Eu não liguei para o que ele disse. Comecei a ficar muito perturbado para isso. Não por causa da dança ou por ela ter sido observada por tantas pessoas, não. Era porquê, terminada a noite, eu ainda não sabia o nome daquela visão.

Surpreendente foi quando, ao tirar o meu casaco, eu vi cair dele uma pena de pomba, a mais alva possível, e um bilhete onde eu pude ler:

“Uma vez por ano é permitido aos columbídeos dançar e enlouquecer os homens por alguns instantes”

Até hoje tenho esse pedaço de papel rabiscado e a pena dentro de um baú, para onde olho em busca de alguma resposta mais consistente. Quando, passando pela praça no caminho para o meu trabalho, espanto uma revoada de pombos, penso na criatura mais maravilhosa com quem dancei certa vez e minha cabeça gira com a possibilidade de não poder vê-la novamente.


domingo, 22 de fevereiro de 2009

A Língua de Moacyr

Ele já nem lembrava mais porquê tinha começado a tomar aqueles comprimidos, mas nos últimos dias, com certeza, não tinham como intuito aliviar a dor. Quando acordava, a primeira coisa que fazia era abrir o vidrinho no criado-mudo e tomar dois de uma vez só, sem água nenhuma para ajudar na descida até o estômago. Aquilo desagradava sua garganta e alguns dias o efeito era tão aterrador que ele ficava deitado na cama, olhando para o teto. De vez em quando, um inseto aparecia próximo à lâmpada e ele gritava impropérios a ele, até o momento que o bichinho saía pela janela e ele começava a chorar aos gritos, pedindo que o dito-cujo voltasse para dentro e o fizesse companhia na festa que se desenvolvia dentro e fora de si. A maioria das vezes, ele não voltava, assim como a esposa do rapaz prostrado na cama. Ambos eram muito espertos para ficar ao lado daquele disfórico que só piorava conforme o sol ia sumindo e reaparecendo, dia após dia. Se soubessem o quanto ele os amava, talvez tivessem ficado para cuidar dele, de sua afta monstruosa na ponta da língua. Foi então que, sentada ao seu lado na cama, uma moça bonita sussurrou-lhe ao ouvido. Aconselhava-o para que cortasse a língua, que o seu sangue derramado sobre os lençois falaria por ele e traria a mulher de volta. Confiando naquela figura provocativa, tomou na mão direita aquele objeto frio de cor argêntea reluzente e tocou o ventre da boca com a força de um varão. Tão logo fez isso o fogo da dor se espalhou por seu corpo inteiro e foi se esvaindo dele na forma de um jorro contínuo de um líquido quente e vermelho. Conforme as coisas foram perdendo suas cores, transformando-se em simples armações infantis, ele recobrava a sua lucidez e tentava estancar com a roupagem da cama a vida que tentava sair de qualquer jeito de dentro de si, acompanhada dos espasmos hemorrágicos. A porta da sala rangeu no momento que ele conseguiu dar um grito abafado por causa das coisas que lhe tapavam a boca. Não demorou nem um segundo e ele já estava dando seu último suspiro que a jovem Marta conseguiu pegar. Com os olhos cheios de desespero, pediu que ele voltasse. O falecido Moacyr, entretanto, parecia insensível diante de suas súplicas. Foram tão grandes os berros naquela noite que os vizinhos tiveram que aguardar na sala para consolá-la. Só foi sair dali altas horas, com o pedaço da língua na mão, que guardou dentro de uma lata onde antigamente se escondiam seus biscoitos favoritos, uns amanteigados vindos da Dinamarca ou algum outro bocado europeu. E toda vez que a viúva passava por ele, pensava consigo mesma que ali era um lugar perfeito para descansar a putrefata parte que levara seu amor à morte. Só foi se livrar dela anos depois quando, consolada, conseguiu casar de novo e sentir dentro de si uma nova língua que a fez esquecer e até amaldiçoar a primeira. E deu por decretado naquela casa que ninguém tomaria daquela maldita pentazocina, nem que se estivesse com o corpo se contorcendo nas dores do mais terrível calvário.